Marco Steinberg. "É preciso repensar o transporte público em função dos mais desfavorecidos"

2020
24-06-2020

Abdicar das grandes infraestruturas ligadas ao transporte público é o que defende o arquiteto finlandês para responder à nova era da pós-pandemia.

Se a pandemia trouxe muita incerteza sobre o que esperar do futuro, também é verdade que ela é agora um estímulo para avaliar o que está a funcionar nas nossas cidades e o que tem de mudar. Esta é a proposta que Marco Steinberg, designer e arquiteto finlandês, lançou no webinar do Portugal Mobi Summit "Como repensar a mobilidade a partir do zero?" O novo papel do transporte público será, talvez, a questão mais emergente neste momento. "Há que fazer uma reflexão sobre os grandes investimentos feitos", defende o também CEO e fundador da consultora Snowcone & Haystack, sediado em Helsínquia. Esse será um debate ao qual nem os acérrimos defensores do transporte público poderão escapar: "Sabemos que ao colocar muita gente no mesmo espaço estar-se-á a aumentar a probabilidade de ocorrer algo semelhante ao que aconteceu com esta pandemia", avisa o especialista. É motivo forte o suficiente para encontrar outras formas de mobilidade com "soluções híbridas" e redimensionadas ao novo padrão do distanciamento social.  

"Pegando nas restrições que impõem agora aglomerações não superiores a cinco, dez pessoas, teremos de saber aplicar essa lógica à escala do transporte." Se isso acontecer – diz Marco Steinberg –, a forma de pensar mobilidade nas cidades será muito diferente.

  É certo que, neste momento, o setor dos transportes públicos está entre os que perde mais dinheiro. Mas o desafio aqui é encontrar meios que os tornem viáveis mesmo com densidades de ocupação muito baixas: "Quase de certeza que não tornará a operação muito lucrativa e, em muitos casos, nem será sustentável", admite o especialista. Mas, por outro lado, é uma mudança que poderá "gerar oportunidades económicas". Mudar, contudo, não é baralhar para voltar ao mesmo. Um novo modelo não pode ficar unicamente entregue ao setor dos transportes: "Terá de ser uma discussão a atravessar todas as áreas." É que a mobilidade – avisa o arquiteto – é a "espinha estrutural" em que as cidades e as sociedades estão assentes. É inegável que os especialistas destas áreas, em particular, tenham de ser ouvidos, reconhece Steinberg, mas esta é também uma discussão que precisa do contributo de outros setores, como os investidores. "Em muitos países, como a Finlândia, boa parte do investimento imobiliário é feito por fundos de pensões, por isso, convém incluí-los neste debate sobre as transformações que podem ocorrer." Até porque podemos estar perante mudanças profundas na "densidade urbana" se a bolha imobiliária rebentar, afetando com isso os fundos de investimento: "É um efeito ao retardador que já se consegue intuir ser uma característica desta pandemia."  

Oportunidades para os mais frágeis

Para já, uma das grandes desigualdades sociais que a covid-19 veio destapar é o "privilégio" de uns poderem fugir do transporte coletivo, enquanto outros não tem alternativa senão usar o comboio, o metro ou autocarro para trabalhar e nas deslocações diárias: "A pandemia tem atingido as pessoas de forma desproporcional, sobretudo as minorias étnicas e os pobres", realça o arquiteto. É o que se tem assistido tanto nas áreas metropolitanas de Lisboa ou do Porto, como nos subúrbios das cidades do norte da Europa: "Se eu for membro de uma família curda e desfavorecida na Finlândia, não terei possibilidade de dispensar o uso do transporte público." Esse é aliás o fenómeno que tem levado as sociedades nórdicas a defender medidas que permitam criar oportunidades para os "mais frágeis", explica o especialista.  

E essa é a lógica que pode ser igualmente aplicada ao setor do transporte público: "Devemos questionar não somente a capacidade e o investimento nas infraestruturas, mas principalmente repensar este setor em função das necessidades das populações que mais dependentes estão deles."

  Não será uma mudança simples, adverte Steinberg, relembrando que, por todo o mundo, são muitas as cidades que fizeram "enormes investimentos" em sistemas de mobilidade, não estando agora preparadas para abdicar delas: "A única coisa que, neste momento, consigo perspetivar é que entraremos num ciclo de soluções híbridas". Aproveitar, por um lado, o que já existe e, por outro, estimular diferentes formas de circulação, como a bicicleta ou outras "micro soluções" de transporte público, serão as tendências: "Como projetista e como alguém diretamente envolvido com estes assuntos, não consigo imaginar, aliás, que a micromobilidade não faça parte da solução."  

No futuro, os transportes de passageiros como o comboio, o metro, os elétricos e a rede de autocarros terão de redimensionar a escala das suas infraestruturas e operar com uma capacidade mais baixa.

  "Isso é um tremendo desafio, implicando obrigatoriamente uma conexão com as modalidades de micromobilidade", explica Marco Steinberg, defendendo que este será o caminho para construir pequenas comunidades com elevados graus de autonomia.  

Dimensões comunitárias

Algumas dessas novas formas de micromobilidade poderão até ser geridas à escala comunitária, permitindo criar oportunidades para gerar empregos, explica Marco Steinberg, recordando que as regiões mais afetadas pela pandemia são também as que mais necessitam de transportes públicos: "Essas soluções poderão mesmo vir a funcionar como motores económicos." Daí a necessidade de haver um esforço, não apenas dos privados, como dos governos centrais e regionais, que terão forçosamente de investir nessa via: "Tais respostas poderão ajudar a diminuir o fosso entre os que detêm recursos e os que não os têm."  

Se reduzir a escala foi a fórmula para combater a pandemia, o mesmo molde poderá vir a ser adotado para conseguir gerir melhor as cidades, mesmo aquelas com enormes densidades populacionais

  "A experiência da covid-19, na Escandinávia, mostrou que a dimensão é o que mais peso tem na capacidade de resposta e adaptação aos novos desafios." Ao olharmos para os casos da Suécia e da Finlândia, é possível perceber que foram os lares de idosos de grande dimensão os mais atingidos por surtos do vírus. Tal já não aconteceu com a Noruega, onde as infraestruturas para a população envelhecida assumem dimensões mais reduzidas: "Em espaços pequenos e com menos utentes, foi muito mais fácil implementar o confinamento e outras medidas sanitárias no momento em que se detetaram os focos de infeção." É a lição que Steinberg diz ser útil transferir agora para o planeamento das cidades: "Estou convencido de que este é o paradigma que será disseminado por todo o território", antevê o especialista, acreditando que essa é a estratégia para minimizar riscos sociais ou de saúde pública e promover ainda a "interação social" nas pequenas comunidades. É nessa escala mais circunscrita que será possível fazer uma melhor gestão dos conflitos sociais, dos investimentos públicos e privados ou da mobilidade, defende o urbanista, destacando ainda o maior benefício de todos: "um grau de humanidade que é finalmente devolvido às cidades." Até agora, o que se tem assistido é o domínio da "escala industrial" a passar por cima das necessidades dos mais vulneráveis, aumentando fenómenos como a pobreza, o racismo ou o desemprego. Bastará olhar para as grandes autoestradas dos Estados Unidos para perceber que o modelo não está a funcionar. As recentes convulsões nas ruas americanas, provocadas com a morte de George Floyd, não apareceram, aliás, do nada, diz o especialista em urbanismo: "É certo que as mega infraestruturas rodoviárias criaram cinturas de segurança, mas, ao mesmo tempo, conseguiram atravessar malhas urbanas e ignorar as realidades que acontecem à volta." Daí a urgência de criar uma mobilidade capaz de assegurar que os "mais frágeis não caiam nem fiquem pelo caminho".  

O arquiteto das cidades inovadoras

Marco Steinberg, além de arquiteto, é também consultor, nas áreas de urbanismo. Em Helsínquia, partilha com Esko Aho, antigo primeiro-ministro da Finlândia, a sede da Snowcone & Haystack e também a paixão por ajudar governos a usar a inovação para projetar o futuro. Design estratégico é a ferramenta de trabalho que ele usa para encontrar as soluções mais eficientes para a mobilidade ou para espaços urbanos.

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