Medo da covid-19 vai redefinir procura por transporte individual

2020
15-06-2020

O comportamento dos consumidores chineses na fase de desconfinamento mostra que houve um recuo da utilização de transportes públicos, táxis e boleias e um aumento da procura por carro privado.

As vendas de carros novos afundaram 76,3% na Europa e 53% nos Estados Unidos em abril, o mês mais duro desde que a pandemia de covid-19 tomou o mundo de assalto. Ordens de permanência em casa, showrooms fechados ou com grandes restrições, fronteiras encerradas, desemprego, consumidores com receio – vários fatores contribuíram para esta quebra histórica de vendas, que no caso dos Estados Unidos representou um recuo a níveis de 1980. O mesmo se passou com carros usados: de acordo com a Cox Automotive, as vendas globais nesta categoria caíram cerca de 34%. É por causa destes números que a última apresentação de resultados da Carvana, uma empresa que vende carros exclusivamente online, surpreendeu o mercado. O CEO Ernie Garcia disse, na conferência com analistas e investidores, que as suas vendas estão a subir entre 20 e 30% por semana, depois de um recuo no início de abril. "É difícil ter visibilidade sobre como a indústria se comportou nas últimas semanas, mas todos os indicadores apontam para que a Carvana tenha ultrapassado a performance da indústria de forma significativa e aumentado a quota de mercado durante este período", afirmou Garcia. A Carvana vende carros usados certificados online e os clientes recebem-nos no local desejado ou vão buscá-los a uma espécie de máquina de vending gigante, sem terem de lidar com vendedores nem esperar na sala de café do stand automóvel. É, como tal, um modelo sem contacto que poderá ser preferencial para os clientes que querem o máximo de distanciamento social. Mas estes números podem indicar mais que isso. Sem vacina nem protocolo certo de tratamento para a covid-19, existe a possibilidade de que a procura de carro próprio regresse em força. Pelo menos é isso que indica um estudo da Ipsos sobre o impacto do coronavírus nas vendas de carros novos na China, epicentro da pandemia. A pesquisa revela que a utilização de transportes públicos versus carro próprio foi invertida. Antes da covid-19, 34% usavam carro privado e 56% escolhiam o autocarro ou metro. Depois da covid-19, 66% passaram a usar carro próprio contra 24% no autocarro ou metro. A utilização de táxi e carro partilhado também desceu: de 21% para 15% e 21% para 12%, respetivamente. O jornal italiano La Repubblica, citando este estudo da Ipsos, escreveu que o pós-pandemia será o "adeus ao transporte público" e que depois do coronavírus vai "tudo em carro privado". O medo do contágio mudará tudo, empurrando os passageiros para os seus veículos privados, afastando-os de modo violento dos transportes públicos, onde obviamente há contacto (mais ou menos restrito) com estranhos", escreveu o autor e jornalista especializado no mercado automóvel Vincenzo Borgomeo. Os números apontam nesse sentido. O estudo da Ipsos indicam que a intenção de compra de carro novo na China disparou para 72%, sendo que 66% dos inquiridos diz querer comprar nos próximos seis meses. O principal motivo que impulsiona a compra é o facto de que conduzir reduz as hipóteses infeção, razão mencionada por 77% dos inquiridos. Metade afirmou que os transportes públicos não são seguros. Outro dado interessante do estudo é que as funcionalidades relacionadas com saúde estão agora no topo dos requisitos, sendo o mais importante para a avaliação de compra para 69% dos inquiridos, acima da segurança do próprio veículo (64%). Mais de metade (51%) disse quer um sistema de ar condicionado com filtro para germes, 49% mencionou materiais anti-bacterianos no interior e 44% um sistema de aviso quando entram numa zona de surto de covid-19. Se isto é o estado de coisas na China, nos Estados Unidos a tendência assemelha-se. Num comentário para o MediaPost, a responsável dos eventos da indústria automóvel Tanya Gazdik citou uma sondagem da plataforma CarGurus onde 39% dos inquiridos disseram que iam mudar os seus hábitos de mobilidade – diminuir ou deixar de usar serviços de partilha de boleias como Uber e Lyft, mesmo depois do desconfinamento. Destes, quase metade (49%) explicou que pretendia voltar a usar um carro próprio e 41% disse que ia comprar um carro novo. É o perigo da "vingança do carro privado" de que falam o diretor do Boston Consulting Group, Joël Hazan, em colaboração com o líder de projeto Pierre-François Marteau e o consultor Benjamin Fassenot numa publicação para a Smart Cities Dive. Os especialistas debruçam-se sobre como evitar este fenómeno e quais os lados positivos das mudanças impostas pela pandemia. O coronavirus dá-nos uma classe mestre: a mobilidade das pessoas impulsiona a riqueza, com externalidades negativas no ambiente", escrevem. "Depois desta crise, os hábitos de mobilidade urbana vão ser drasticamente modificados por todo o globo." Uma das partes positivas é o advento do trabalho remoto, ao qual muitas empresas e profissionais resistiam anteriormente e que agora entrou no quotidiano. Ao trabalharem de casa, as pessoas reduzirão as necessidades de deslocação diárias, o que contribuirá para um menor congestionamento de tráfego e poluição. Há ainda, referem os analistas do BCG, maior abertura para deslocações em bicicleta, de forma a evitar transportes públicos e sem recorrer a carros. Nova Iorque, Seattle e Chicago são algumas das cidades onde a utilização de bicicletas cresceu bastante desde o início da pandemia. O reverso da moeda é a travagem dos serviços de partilha de boleia e o receio de andar de transportes públicos, como se está a ver na China após a reabertura. Estas tendências terão de ser abordadas a nível governamental para evitar um retrocesso, do qual o reforço da utilização do carro privado é apenas um dos perigos. O especialista em planeamento urbano Charles Laundry, um dos oradores do Portugal Mobi Summit 2020, avisou que as políticas que as cidades adotarem serão decisivas para determinar qual o resultado desta crise para a sustentabilidade da mobilidade urbana. É algo que também está patente no estudo que uma equipa internacional de cientistas publicou esta semana na Nature. A pesquisa mostra que as emissões globais de dióxido de carbono sofreram uma redução de 17% no início de abril, em resultado da quase paralisação das deslocações e modificação dos padrões de consumo de energia. No pico do confinamento, a redução média nos países analisados foi de 26%. É uma redução "extrema e nunca vista antes", mas a verdade é que reconduziu o volume de emissões globais apenas a níveis de 2006 – o ano em que Al Gore soou o alarme com o seu documentário "Uma Verdade Inconveniente." Ou seja, o desafio é tão grande que mesmo uma situação sem precedentes como esta, com 4 mil milhões de pessoas metidas em casa, parece uma gota num oceano. O que a situação traz é uma oportunidade de "pôr mudanças estruturais em marcha ao implementar estímulos económicos alinhados com os caminhos do baixo carbono", escreveu a equipa internacional. Os cientistas acreditam que "as ações dos governos e os incentivos económicos no pós-crise irão provavelmente influenciar o caminho das emissões globais de CO2 durante décadas."

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