“A covid criou um desafio enorme para o transporte público”

2022
28-07-2022

Chris Murray, director da Core Cities Uk, uma rede das principais cidades britânicas fora de Londres, destaca a ligação entre a psicologia e o planeamento urbano e fala de “cidades introvertidas e extrovertidas”. A metrópole sem carros não é utopia mas é difícil de atingir

Em tese, é possível uma cidade sem carros? E há uma abordagem sensorial à vida urbana? A partir de Manchester, Chris Murray, director da organização Core Cities Uk, um lobby a favor da qualidade de vida nas grandes cidades britânicas fora de Londres, defende, em entrevista ao Portugal Mobi Summit (PMS), essa ligação entre “a psicologia e a cidade”.

“A psicologia urbana usa técnicas da psicologia clínica e tenta aplicá-las. Faz testes para perceber se uma cidade é introvertida ou extrovertida, temos na nossa rede um psicoterapeuta residente a olhar para o desenho da cidade (Manchester). São princípios de neurociência, olhamos para o problema da poluição e degradação nas grandes metrópoles. Todos concordam que o lugar afeta fundamentalmente o nosso desenvolvimento e bem estar enquanto seres humanos”, observa Chris Murray. Falamos de ligações sensoriais, portanto.

Já a cidade sem carros, embora não considere a premissa utópica, lembra que “a covid criou um desafio enorme para o transporte público” por causa do receio dos utentes com o contágio em multidões aglomeradas em autocarros, comboios ou carruagens de metropolitano. Ressalvando que desconhece a situação em Portugal, exemplificou com o seu país: “No Reino Unido não vimos um regresso ao transporte público da mesma forma como na pré-pandemia. É um assunto muito importante. Sem isso, estamos dependentes dos carros e depois temos congestão e poluição aérea”.

Uma outra lição da pandemia é que “precisamos de espaços livres”, os quais foram sobejamente aproveitados em todo o mundo para caminhar, andar de bicicleta ou simplesmente respirar um pouco das quatro paredes. “O espaço urbano livre de carros foi muito importante, no Reino Unido significou ser muito trendy no sentido de vivência, particularmente para os jovens que têm só apartamentos de um ou quartos e sem varanda. E se se está em confinamento num espaço desses, a sua relação com esse prédio e com a cidade vai mudar. O que quer e o que precisa do ambiente urbano vai mudar para o futuro”, salienta Chris Murray.

E nessa linha de argumentação, a forma como nos movemos e a poluição causada pelos transportes têm um profundo efeito psicológico. “Se estivermos rodeados por um tráfego intenso na cidade, de uma perspetiva psicológica vamos estar hipervigilantes o tempo todo, em alerta. A qualidade do ar também afeta mentalmente, e está ligada a doenças físicas e ao aumento dos suicídios. O que absorvemos, também através da comida, tem profundas consequências para nós. Fundamentalmente, o lugar afeta quem somos e se somos capazes de viver bem, a nível físico e de saúde mental”.

Transporte: a componente crítica

Daí a importância da criação de lugares, dessa nova disciplina que é o place making. “Se um lugar nos pode afetar negativamente então é possível o place making criar um lugar que afete positivamente? Lugares de empatia, de cura, onde se cuida, de ligação humana e desenvolvimento. Sim, pode. Mas não sabemos se o transporte é uma componente crítica para podermos viver numa cidade e que consequências negativas tem para nós”, frisa o director da Core Cities UK.

Por outro lado, o tempo apressado nas grandes urbes “está ligado a níveis crescentes de depressão, ansiedade e medo da morte”. O que também não favorece o estado mental dos seres urbanos é “a escala das cidades, que é arrebatadora”. Chris Murray lembra que no passado da Humanidade vivíamos em grupos de 250 a 300 pessoas e as cidades vieram “distorcer” esses números completamente. É necessária uma nova escala, ao nível do olhar humano, defende. “O bairro torna-se um importante nível de escala, para ajudar as pessoas a envolverem-se com a cidade, no sentido lato das suas proporções”.

Também é preciso acertar com a funcionalidade dos espaços. “Aqui no Reino Unido temos um problema massivo de habitação e de falta de qualidade da mesma. Quando falamos de habitação, é mais do que um tecto sobre a cabeça. É um lugar para viver, para crescer, de um ponto de vista psicológico tem de nos encantar”.

A qualidade dos espaços que habitamos é decisiva?. “Absolutamente”, responde Chris Murray.  “E está demonstrado: se conseguirmos ver verde a partir da janela do hospital tal pode melhorar o nosso tempo de cura significativamente. E o acesso a espaços verdes de qualidade aumenta o comportamento pró-social, essencialmente a capacidade de nos darmos com os outros e de confiarmos nos nossos vizinhos. São assuntos importantes que têm a ver com a Saúde, a Economia, como um espaço funciona dita se o mesmo vai ter sucesso economicamente”.

Essa perceção existia no passado da Humanidade e ao longo do tempo perdeu-se.  “Acho que entendemos isto desde o princípio das cidades, na Grécia Antiga e Roma Antiga onde tínhamos o  Fórum, a Ágora, até na América do Sul, nas cidades maias e astecas. O espaço público era absolutamente fundamental para aquele sentido de comunidade, identidade e bem estar. Aqui no Reino Unido também acertámos durante as épocas vitoriana e georgiana”.

Para este observador profissional do espaço urbano o ideal seria “permitir que as pessoas tomem conta dos espaços e ver como os usam, de uma forma experimental, antes de  se impor os planos de design”.

As cidades de 15 minutos

O desafio das cidades de 15 minutos, cuja experiência foi iniciada em Paris com bairros onde os residentes têm as infraestruturas e os serviços ao dispor nesse curto tempo percorrido a pé, implica maior densidade para as metrópoles. O que só significa uma coisa: planeamento. E um resultado: qualidade de vida. “Se pensarmos nas cidades no Reino Unido que não são tão densas como na Europa, Paris por exemplo é um terço mais densa por quilómetro quadrado do que Londres... o mesmo com as  nossas segundas cidades, menos densas do que as francesas, alemãs, italianas ou portuguesas... Mas essas cidades de outros países não parecem mais avassaladoras do que Londres ou Manchester porque foram pensadas e desenhadas bem. A densidade é atingível de uma forma positiva e pode-se criar muita vitalidade com isso. Mas tudo isto está muito ligado à viabilidade do transporte publico. A alta densidade é necessária para tornar o transporte publico viável para o futuro”.

Chris Murray entende que “o exemplo de cidades conscientes e alertas psicologicamente ainda está por emergir”. Mas há locais interessantes para observar de um futuro a ser feito hoje. Apontou alguns: “Se olharmos para UTown, em Singapura, vemos que é um grande sucesso em place making e design de qualidade. Quando pensamos em resiliência temos de pensar nas fundações da economia. Temos exemplos fantásticos de espaço público no Reino Unido, Sheffield, Keyside em Newcastle, Castlefield ou Piccadilly Gardens em Manchester, são exemplos de grande qualidade. Mas são também exemplos de projetos difíceis de urbanismo. É olhar para essas cidades e pensar nos princípios que as tornaram um sucesso”.

Chris Murray foi entrevistado por Paulo Tavares e Charles Landry, curadores do Portugal Mobi Summit 2022, o maior evento de mobilidade urbana que pode acompanhar em www.portugalms.com.

PERFIL

Durante mais de 20 anos, Chris Murray tem trabalhado na vanguarda da política urbana britânica - e com cidades a nível internacional. Como director do Core Cities UK, uma colaboração entre as principais cidades britânicas fora de Londres, ajudou a liderar um processo de descentralização e devolução às cidades a nível nacional. Antes disso, foi Diretor da Comissão de Arquitectura e Construção Ambiental, e foi destacado para o Gabinete do Vice-Primeiro Ministro para estabelecer a Academia para o Desenvolvimento de Comunidades Sustentáveis, uma agência nacional de competências de regeneração. No início da sua carreira, trabalhou no governo local, como assistente social psiquiátrico, na educação, cultura e trabalho comunitário. É autor de várias publicações e livros, sendo o mais recente "Psychology and The City: The Hidden Dimension", em co-autoria com Charles Landry.

Rute Coelho

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